sexta-feira, julho 14, 2023

ORPHEUS E BRUCE ISMAY

A DESCIDA ATÉ AO INFERNO 

Faltava muito pouco tempo para o Titanic desaparecer no fundo do oceano. A banda tocava mas poucos prestavam atenção, Wallace Hartley, chefe da banda contudo mantem o entusiasmo e convence o restantes membros a continuarem, pelo menos isso os mantinha quentes. Jack, Rose, Fabricio e Tommy Ryan passam por eles, "Música para afogar, agora sei que estou na primeira-classe." comenta o irlandês que se tornou amigo do grupo durante a viagem. A peça era Orpheus. Os acordes continuam com Bruce Ismay no bote salva vidas a ser descido, e só termina quando o capitão Smith se tranca na ponte de comando.

James Cameron escolheu todas as músicas que se escutariam da banda a tocar deliberadamente pelo forte simbolismo que cada uma trazia a cada momento, por exemplo, podemos ouvir na cena excluida em que Rose arruma os seus quadros de Picasso a música "Wedding Dance" (Dança do Casamento), quando Caledon diz "I'll be the first." (Eu serei o primeiro.). 

Por esse motivo a escolha de Oprheus para o momento em que Ismay embarca num salva vidas com o oficial a mandar descer a embarcação, não foi mero acaso. 

Orfeu era filho da musa Calíope e de Apolo, e quando tocava a lira (inventada por ele ou a qual lhe foi dada por Apolo, dependendo da origem do mito) aconteciam coisas miraculosas, como as pedras moverem-se, os animais selvagens ficarem mansos ou mesmo as águas dos rios pararem por completo o seu movimento. Amava a ninfa Eurídice, a qual eventualmente morreu - na versão mais famosa da história - devido a uma picada de serpente, a qual sucedeu ao tentar escapar de um perseguidor. Com uma tristeza profunda, pegou na sua lira e dirigiu-se ao reino de Hades, esse mundo inferior, usando mesmo a sua música para convencer o barqueiro Caronte a deixá-lo passar e mesmo a adormecer o lendário monstro Cérbero, finalmente contactando com o deus regente desse reino. A música tocada pelo herói perante este foi tão bonita (mas triste) que o próprio Hades chorou, e com o apoio da sua mulher, Perséfone, deu autorização a que o tocador de lira levasse a sua amada de volta para o mundo dos vivos. 

No entanto, foi-lhe dito que não poderia olhar para ela, que o seguiria, até que atingisse um ponto iluminado pela luz do sol. Estavam unidos novamente! Porém, quando este estava perto da saída do temível reino, já com a luz do sol a ver-se ao final do caminho, pensou em verificar se ela o seguiria ou não. Teve ainda um mísero tempo para a ver transformar-se num espectro da sua forma original, antes de, punido pelos deuses, a perder para todo o sempre. 

Assim foi o fim dos amores de Orfeu e Eurídice. Desesperado, Orfeu nunca mais foi o mesmo. Existem diversas versões relativas á morte deste, sendo algumas das mais famosas aquela em que ele se suicidou ou uma narrando que ao sofreu com esta perda o herói mudou por completo toda a sua vida, recusando-se mesmo a olhar para qualquer outra mulher, o que eventualmente levou uma tribo de mulheres selvagens (as Menéades) a despedaçá-lo, caindo a sua cabeça num ribeiro, mas sem nunca deixar de cantar.

A sua extrema perfeição no acto de tocar lira era considerada como tendo mesmo a capacidade de mudar o imutável, uma provável metáfora para a capacidade da humanidade mudar todo o seu ambiente através do uso de instrumentos, não propriamente dos musicais mas através de outras ferramentas. Ao tocar o seu instrumento para a bela Euridice, este tentava talvez que a sua amada ficasse, também ela, imersa na beleza da sua arte. 

No entanto, ao ser picada por uma serpente e levada para um reino ao qual damos hoje uma conotação de sofrimento eterno, dá-nos a sensação que tudo o que é belo terá obrigatoriamente um final cruel, em todas as suas vertentes. Sobre a descida ao temível reino de Hades, num primeiro ponto pode-se compreender que o amor é capaz de ultrapassar quase tudo, mas numa análise final e mais cuidada entende-se que nem mesmo o poder lendário deste poderá ultrapassar a letal lei da morte. 

É deste modo que vemos Ismay mergulhar na escuridão do inferno, o orgulho e beleza da sua criação estava fadada a ficar eternamente no fundo do oceano a quase 3800 metros. 

Ismay também nunca mais foi o mesmo, recusou-se a olhar para trás nos momentos finais do naufrágio, foi alvo de muitas criticas por ter sobrevivido, praticamente desejavam a sua cabeça como prémio, reformou-se um ano depois e foi-se afastando aos poucos da vida maritima. Viveu recluso na sua casa até falecer em 1937 inconsciente, cego e mudo dias depois de ter sofrido um ataque cardíaco.

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