A TRAGÉDIA DO BAQUET
A tragédia do Titanic é conhecida como o início do fim da belle époque, mas existiu antes um drama nesta época de ouro, que fez o mundo repensar, e o melhor da humanidade ressurgiu. Há pouco tempo, em pesquisas, deparei-me com uma tragédia ocorrida na noite de 20 para 21 de Março de 1888 na cidade do Porto, Portugal, com pormenores que me fizeram pensar no Titanic e que, tal como este, fez nascer também em mim um elo de ligação: O incêndio do Teatro Baquet.
"Sei que havia, numa rua bonita, um teatro chamado Baquet..." leva-nos esta frase ao passado para a Rua de Santo António (actual 31 de Janeiro), onde a 22 de Fevereiro de 1858 é colocada a primeira pedra de um grandioso teatro projectado por um alfaiate, seu primeiro proprietário, António Pereira. Em tempo recorde, menos de um ano, em 13 de Fevereiro de 1859 abriam-se as portas do Teatro Baquet com um faustoso e requintado baile de máscaras, cujo fundo musical esteve a cargo de uma orquestra pedida de empréstimo ao Teatro de S. João e dirigida pelo maestro Medina Paiva. A inauguração oficial decorreu em 16 de Julho, mas o falecimento da rainha D. Estefânia, no dia seguinte, e o luto nacional por oito dias que se seguiu obrigaram a que a segunda representação apenas ocorresse em 25 de Julho. Um infausto acontecimento que, segundo algumas vozes mais supersticiosas, teria marcado o próprio destino do Teatro Baquet. (a fazer lembrar os atrasos ocorridos com a viagem inaugural do Titanic.)
Com a porta principal na Rua de Santo António e uma saída de serviço para Sá da Bandeira, o Baquet era um edifício excepcional: possuía uma fachada agradável, enriquecida com uma varanda em pedra, onde repousavam quatro estátuas, figurando, respectivamente, a Pintura, a Música, a Comédia e as Belas-Artes. (Ao ler este pormenor, veio-me à memória a excepcionalidade do Titanic e as suas quatro chaminés, assim como as suas estátuas do relógio a Honra e a Glória).
O desenho da frontaria coube a Guilherme Correia e as pinturas da sala foram realizadas por João de Faria Teives. No interior, destacavam-se ainda os panos de boca, ornamentados com perspectivas do Porto, o grande lustre sobre a plateia, e grandes espelhos nos salões que conferiam um reflexo de luminosidade ornamentados com requintadas molduras. Mas o que, do ponto de vista arquitectónico, distinguia o Baquet de outros teatros era o facto de estar, por assim dizer, enterrado. A primeira das suas três fiadas de camarotes ficava ao nível da rua, e à plateia descia-se por duas escadarias laterais. Quando faleceu António Pereira, em 1869, a notoriedade do seu teatro já ultrapassara as fronteiras nacionais. Entre muitos outros nomes sonantes dos meios musicais de Oitocentos, apresentou-se aqui o célebre virtuoso espanhol do violino, Sarazate, que viria a ter no pianista português Viana da Mota um dos seus colaboradores regulares. E terá sido também no Baquet que, pela primeira vez, se representaram operetas interpretadas por companhias portuguesas.
Volvidos quase trinta anos, o Baquet ainda continua a orgulhar o país.
Em 1887, Guilherme Gomes Fernandes, então comandante dos Bombeiros Voluntários do Porto, elabora um relatório da sua responsabilidade alertando a necessidade da realização de obras tendentes a criar condições de segurança no teatro, mas foi ignorado. Em consequência, no dia anterior ao desastre oficiou ao vereador do pelouro de incêndios o seu estudo, afirmando não se responsabilizar pelo que pudesse vir a acontecer.
E é numa noite grandiosa, de brilho, que após o jantar se abate a tragédia.
Era uma noite fria e ventosa, na Rua de Santo António os transeuntes, com abafos de inverno, dirigiam-se para a fachada iluminada do Teatro que anunciava um espectáculo único para essa noite - Os Dragões de Villars (opereta cómica) e a Gran Vía (zarzuela de Frederico Chueca e Joaquín Valverde, traduzida e adaptada por Guedes de Oliveira). A casa estava lotada, mais de 600 pessoas. Pessoas das mais proeminentes famílias abastadas da sociedade portuguesa, famosos da época e também anónimos e pobres. Entre os ilustres estava a famosa mulher homem da Granja do Tedo, uma lendária figura feminina que alimentou a maledicência da cidade antes de se transformar na respeitável esposa e mãe de uma conhecida família portuense, (uma espécie de Molly Brown), Ciríaco Cardoso, empresário do Teatro que era o seu orgulho, era também o maestro da orquestra. (um Bruce Ismay).
A Gran Vía reproduzia sobre o palco do Baquet um sátira política contra a demolição dos velhos quarteirões de Madrid em prol de uma nova e sofisticada artéria na cidade (analogia óbvia com a cidade de Lisboa que inaugurara a sua primeira avenida em 1886). Antes da passagem ao último quadro, o público, delirante, pedia mais um encore da última cena. O espectáculo já durava mais duas horas que o costume, a temperatura no interior estava elevadíssima, mas sem dúvida que aquela noite já tinha sido um êxito!
Nos bastidores, um actor que aguardava o momento de reentrar em cena reparou que o tecto fingido do cenário estava a arder. Gritou que descessem a bambolina e a grande tela do quadro seguinte voltou a desenrolar-se com um estrondo. Ninguém se apercebeu do que se estava a passar... apenas alguma agitação sob o cenário e um vago crepitar... O maestro apela à calma, que não existe motivo para o pânico.
Poucos segundos depois os ocupantes do camarote 24 situado mesmo por cima do palco dão-se conta do perigo e saem corredor fora largando um deles o grito «Fogo!». É então que a sala inteira acorda do encantamento da música e das luzes e deflagra o pânico!
(Impossível não fazer analogia com o pânico do Titanic nas cenas seguintes).
A multidão em pânico e horrorizada, homens, mulheres e crianças correm pelas coxias sem esperar o alarme, saltam cadeiras, tropeçam, caiem. Muitos espectadores esbarram com quem sai das primeiras filas, acumulando-se no fim do estreito corredor para a Rua de Santo António. Aí vão sendo empurrados, esmagados e pisados por quem está atrás, numa onda de terror apertados e sufocados. Alguns quebram as janelas para arejar e poderem respirar. Gritos ecoam por toda a parte. Ouve-se um estalido de algo que se solta, e depois outro e mais outro, eram os cabos do grande lustre que baloiçando de um lado para o outro, solta-se finalmente e cai no fundo da plateia soltando uma enorme nuvem de estilhaços de vidro e chamas. (A fazer lembrar a queda da chaminé.) A multidão continua a tentar sair desesperada da grande sala. O tecto fragilizado pela queda do lustre abate-se sob a multidão, num enorme estrondo matando uma quantidade de pessoas que na plateia estavam presas entre o ferro do lustre. (Como o fim da grande escadaria). A fachada ameaçava ruir a todo o momento.
Das varandas do edifício, vários espectadores lançaram-se à rua, quebrando braços e pernas em pancadas surdas. As chamas começavam a lamber os prédios vizinhos, obrigando os respectivos inquilinos a abandonar apressadamente as suas casas. Vários populares atravessaram as chamas para resgatar crianças e mulheres que ainda se encontravam no interior do teatro. Uma das saídas estava trancada, mas ninguém se lembrou disso, muitas vítimas para evitar o pânico na saída oficial do teatro, dirigiram-se para essa saída oposta, por corredores cheios de fumo e desesperadas tentaram arrombar a porta sem sucesso. Resolveram esperar mas o calor era cada vez mais intenso, ao ponto dos grandes espelhos do salão de recepção começarem a quebrar e a cair no chão. Percebendo isso, e aparecendo um homem em chamas, a multidão grita por socorro. O som de vidros que se quebram, gritos, estalos do edifício que quer quebrar, era esta a visão que alguns populares tinham de um miradouro e que assistiam em choro à tragédia daquela noite ao longe (como os sobreviventes em botes). Ciriaco Cardoso, o proprietário negligente (a fazer lembrar Bruce Ismay) estava a salvo e sem perceber ainda a situação real, comentou: "Estou perdido, estou arruinado, mas resta-me a consolação de que ninguém morreu!" Estava completamente equivocado!
Alguém consegue desligar o gás, deixando ainda os poucos sobreviventes que lutam pela vida mergulhados nas trevas. (tal como no Titanic as luzes se apagam.) A multidão grita em pânico, a fachada do edifício dá um rugido, ouvem-se estalos e paredes que racham, e num enorme estrondo a fachada do grande teatro desmorona. (como a quebra do navio). As quatro estátuas símbolo do teatro, caiem impotentes ao seu final. As pessoas agarram-se onde podem ao que resta dos soalhos do edifício, a profundidade do teatro construído abaixo do chão, assustava qualquer um que se quisesse soltar. Mas a fragilidade da construção acaba por levar estes poucos espectadores para o abismo. Com o incêndio já praticamente extinto, os bombeiros voluntários que tinham chegado à Rua de Sá da Bandeira onde combateram as chamas, visto ser essa a entrada «oficial» do teatro, lembraram-se de ir acudir à porta de Santo António... onde atónitos confirmaram a existência de um autêntico mar de corpos carbonizados... poucos foram os resgatados dos escombros ainda com vida. (como no retorno dos botes para resgatar sobreviventes). Entre famosos, pessoas de proeminentes famílias do país e anónimos, algumas fontes indicam que mais de 170 pessoas morreram. É ainda a maior tragédia ocorrida num grande teatro europeu e das maiores no mundo.
O número de corpos não identificados era elevado, os jornais da época relatam o horror de pedaços de corpos nos escombros, uma cabeça desfeita, braços, pés...
Foi decidido que se faria um funeral colectivo na noite de 23 de Março, no Cemitério de Agramonte, num jazigo monumental e comum, construído com bocados de escombros, ferros retorcidos dos camarotes e colunas chamuscadas.
Nos dias seguintes à tragédia, realizaram-se inúmeras iniciativas destinadas a recolher fundos para auxílio das famílias enlutadas. A mais importante foi, provavelmente, a Matinée da Imprensa Portuense, no Palácio de Cristal, a que assistiram a rainha D. Maria Pia e o infante D. Afonso. As orquestras do Baquet e do Teatro do Príncipe Real (hoje de Sá da Bandeira) actuaram em conjunto, e Bordalo Pinheiro associou-se ao evento dispondo-se a realizar "caricaturas instantâneas" de personalidades conhecidas. (após a tragédia do Titanic ocorreram eventos semelhantes)
Após a "matinée", D. Maria Pia percorreu durante quatro horas as casas dos parentes das vítimas, distribuindo generosamente libras de ouro. O líder do Partido republicano, Alves da Veiga, foi um dos visitados, não porque lhe tivesse morrido alguém, mas porque recolhera dois órfãos de um dos mortos do Baquet. João Chagas, que viria a colaborar com Alves da Veiga na intentona do 31 de Janeiro, acompanhou a visita e deixou-nos a descrição pormenorizada desse tocante "momento de conciliação de dois princípios", que reuniu num acto solidário a máxima representante da monarquia e o chefe da oposição republicana.
Dias volvidos, o governador civil, o presidente da Câmara Municipal do Porto e o vereador do pelouro de incêndios abrem um inquérito para apurar responsabilidades (tal como no Titanic). A fazer fé nos depoimentos das testemunhas da tragédia, registados pela imprensa da época, a origem do fogo estaria na queda de uma gambiarra, que incendiou o pano de boca e o palco e logo se propagou a toda a sala, semeando o pânico e a morte entre os espectadores e o pessoal do teatro que não conseguiram alcançar as portas de saída e salvar-se. Tentaram culpar Guilherme Gomes Fernandes, então comandante dos Bombeiros Voluntários, mas este indignado, relembra os três acusadores do seu relatório em que alertou para uma tragédia daquela dimensão e que fora ignorado, passando de acusado a acusador.
Como é que esta funesta gambiarra saiu do seu lugar e se deslocou tão depressa, desde o meio da sala até à boca do palco?
O Teatro Baquet passou assim à história, envolto numa capa de lenda, de mistério e de tristeza... imortalizando-se um palco de emoções, luxo e fantasia...
Segue a lista de vítimas do Teatro Baquet:
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