OS PORTUGUESES QUE MORRERAM NO TITANIC
PARTE II
Artigo da Revista Sábado da edição nº 415 de 12 de Abril de 2012.
A separação era ainda mais rígida entre os passageiros da 2.ª e da 3.ª classes, pelo que é possível que os três madeirenses nem tenham conhecido o outro português a bordo. Até ao momento também não foram encontradas imagens dos madeirenses, mas estão descritos em documentos militares consultados pela SÁBADO no Arquivo Geral do Exército.
O mais velho dos três amigos era o agricultor Manuel Gonçalves Estanislau, de 38 anos e, segundo um impresso emitido em 1895 pela comissão de recrutamento militar do concelho da Calheta, media 1,65m, tinha o rosto redondo, olhos castanhos, cabelo preto e pouca barba. Um problema de saúde identificado com o número 18 da tabela de lesões, que correspondia a deformações no tronco, levou a que fosse "julgado incapaz definitivamente" pela Junta de Inspecção para o serviço militar.
Vivia com a mulher, Maria da Encarnação, 36 anos, e os cinco filhos, numa casa de colmo no Arco da Calheta. Os seus rendimentos provinham de um pequeno terreno, onde cultivavam batatas, abóbora, feijão e figos. Foi tirar o passaporte ao Governo Civil do Funchal no dia 30 de Março de 1912 com o objectivo de emigrar para ir trabalhar numa fábrica de algodão nos arredores de Boston, nos Estados Unidos.
O plano previa que a família se juntasse a ele assim que houvesse condições para pagar a viagem e para viverem todos juntos. Mas a decisão de viajar contrariou a vontade da mulher, conta à SÁBADO Maria Bernardete, uma bisneta de Manuel Estanislau.
Também há uma descrição física de José Neto Jardim, numa licença passada pelo comandante militar da Madeira, que em 6 de Março de 1912 o autorizou a viajar "para os Estados Unidos da América do Norte". Tirou o passaporte cinco dias mais tarde no Governo Civil do Funchal. Este agricultor de 21 anos nascido na Calheta tinha rosto comprido, olhos castanhos, cabelo e barba pretos, nariz e boca regulares, apresentava como sinal particular o facto de ter sido vacinado e era ainda cinco centímetros mais baixo do que Manuel Estanislau – media 1,60m.
Tinha-se casado menos de dois anos antes e deixou uma filha de 9 meses para ir trabalhar com um irmão que estava instalado como lavrador na Califórnia – o que faz supor que se iria separar do amigo Manuel Estanislau à chegada ao destino.
O terceiro companheiro de viagem era o também agricultor Domingos Fernandes Coelho, de 20 anos. Era o segundo mais novo de nove irmãos, de acordo com documentos do registo paroquial de Madalena do Mar, disponibilizados no site Encyclopedia Titanica pelos investigadores portugueses José Luís e Filipe Prista Lucas.
Livrou-se de cumprir o serviço militar por ter hipospadia, uma malformação da uretra e do pénis que o impediria de urinar de pé. Tinha cabelo castanho-claro, rosto comprido, a sua cor de pele é descrita como "macilenta" e era o mais baixo dos três amigos: media apenas 1,55m. O Governo Civil do Funchal emitiu em seu nome um passaporte com o n.º 518.
Os três amigos saíram do Funchal a 1 de Abril, no vapor Aragon, para Southampton, no que seria a primeira etapa para juntarem o seu nome ao dos 17 mil madeirenses que emigraram para os Estados Unidos nos primeiros 25 anos do século XX. Em Inglaterra, procuraram o primeiro navio que partisse para a América. A sua entrada no Titanic é assim "um acaso trágico", sustenta Duarte Mendonça, autor de uma tese de mestrado sobre a emigração madeirense para os EUA. "Podiam ter feito escala nos Açores [por onde passava a outra rota para a América], mas rumaram a Inglaterra. E o Titanic era o navio seguinte a zarpar", explica à SÁBADO.
Compraram os bilhetes mais baratos, para a 3.ª classe. Por 7 libras e 1 xelim, que correspondem a cerca de 660 euros 100 anos depois, os madeirenses tiveram direito a dormir em beliches, em camaratas para quatro a seis pessoas, nos pisos inferiores do navio. Passariam a maior parte do tempo no salão de 3.ª classe, onde também funcionava a enfermaria, ou na sala de fumo, que tinha um bar próprio e escarradores para os viajantes que mascavam tabaco. Era enorme o contraste com o requinte que se podia observar na 1.ª classe, onde viajavam milionários como John Jacob Astor, construtor do Hotel Waldorf Astoria, e Benjamin Guggenheim, que viajou com três empregados e a amante, uma cantora francesa.
A partir do momento em que o Titanic chocou com um icebergue, às 23h40 de 14 de Abril, os passageiros de 3.ª classe foram os primeiros a ver as camaratas inundadas. E eram os que tinham menores hipóteses de sobrevivência: por estarem nos pisos inferiores, mais longe dos terraços onde estavam os botes salva-vidas; por todos os acessos a esses terraços estarem bloqueados; por muitos deles não falarem inglês, como os três madeirenses, nem perceberem as instruções de emergência do pessoal de bordo; e ainda por terem recebido mensagens de tranquilização com o objectivo de se aguentarem nos pisos inferiores do navio até à 1h15, quando quase todos os salva-vidas já estavam em alto-mar, ocupados pelos viajantes de 1.ª e 2.ª classes. A prioridade foi dada a mulheres e crianças, mas há relatos de que muitos homens se disfarçaram com cabeleiras para iludirem os oficiais e arranjarem um lugar seguro.
Os sobreviventes que descreveram os momentos de caos que se seguiram apontaram geralmente como responsáveis "italianos", "estrangeiros" e passageiros "de aspecto mediterrâneo". Um tripulante cujo depoimento é citado no livro Os Irlandeses a Bordo do Titanic contou que ouviu um dos oficiais dar ordem de prioridade para os ingleses ("british first") no acesso aos barcos salva-vidas, em detrimento dos italianos e dos portugueses da 3.ª classe, que assim eram forçados a ficar na água.
Este sobrevivente declarou que, naqueles últimos momentos antes de o navio colapsar, tinha visto no deck uma mulher portuguesa com três bebés – mas deverá ser um engano na nacionalidade.
Outro relato dramático relacionado com uma portuguesa foi feito na época por uma hospedeira que conseguiu lugar no salva-vidas número 11, onde estavam 75 pessoas, 62 das quais mulheres. Descreveu o drama de uma noiva portuguesa que estava de lua-de-mel e tinha perdido o marido. Na manhã seguinte, quando apareceu o Carpathia, o navio que recolheu os sobreviventes, a noiva pensou que era o Titanic e que o seu marido estaria a salvo. Quando percebeu o equívoco, ficou de rastos. Mais uma vez, deve ter sido uma confusão com uma espanhola que seguia em viagem de núpcias e ficou viúva.
Não se sabe exactamente como é que os quatro portugueses morreram: se ficaram a bordo do Titanic quando este se afundou, se ficaram à deriva no mar enregelados em águas à temperatura de dois graus negativos, ou se foram baleados num dos vários tiroteios que marcaram estes momentos de pânico. Os seus cadáveres nunca foram recuperados ou, se foram, não estavam em condições de ser identificados.
A viúva do madeirense mais velho, Manuel Gonçalves Estanislau, contou durante muitos anos que cortaram as mãos do marido no preciso momento em que ele tentava chegar a um salva-vidas, recorda a bisneta, Maria Bernardete. Já Manuel Leça, ex-presidente da Câmara da Calheta e professor de História reformado, diz à SÁBADO que sempre ouviu contar que Manuel Estanislau chegou a remar num bote mas, como estava sobrelotado, teve de ser sacrificado: "Atiraram-no borda fora. É o que se conta." Não se conhecem testemunhos dos sobreviventes que confirmem estes rumores.
Dois dias depois da tragédia, a mulher de José Jardim estava a tricotar com um grupo de amigas à sombra de uma figueira quando uma lapa lhe caiu no dedo. Achou que era um mau presságio: e, de facto, quatro horas depois, chegou um telegrama da empresa proprietária do Titanic a dar-lhe informação oficial sobre o acidente.
A casa bancária Pinto Leite & Nephews contribuiu para o fundo de socorro às vítimas do acidente onde morreu o seu ex-funcionário José de Brito com 105 libras, o que equivale, 100 anos mais tarde, a quase 10 mil euros. Uma parte dos donativos foi entregue pelo cônsul britânico no Funchal às famílias dos três madeirenses: o pai de Domingos Coelho recebeu 60 libras; à viúva de José Jardim foram entregues 90 libras; e a viúva de Manuel Estanislau, que ficou com cinco filhos órfãos, teve direito a 150 libras.